Bastou o governador Tarcísio de Freitas manifestar desconfiança quanto ao sistema de justiça do Brasil; levantar ressalvas quanto à obediência do devido processo, no julgamento de Jair Bolsonaro, e apontar as arbitrariedades das Cortes superiores, para que fosse bombardeado com uma avalanche de ataques da dita “imprensa”. Os jornais não mediram palavras para dizer como Tarcísio teria, ao assim se manifestar, alegadamente sujado sua “imagem de político moderado” e revelado ser um “radical”, ao acenar para o “bolsonarismo”.
Há anos, a imprensa tem feito um cuidadoso trabalho, repetido diuturnamente, com o objetivo de associar qualquer questionamento à estrutura do poder de fato que se consolidou no país, a uma força, batizada de “bolsonarismo”. Pouco importa que as demandas e pautas propostas por quaisquer críticos do regime estejam de acordo com o ordenamento legal e que sejam previstas na constituição — e mais importante, também não importa que estes críticos não sejam, necessariamente, correligionários do ex-presidente Bolsonaro, ou sequer com ele simpatizem.
Um indivíduo que propõe anistia a uma cabeleireira condenada a 14 anos de prisão, por pichar uma estátua, é automaticamente taxado de “radical” ou “bolsonarista”. Parlamentares obstruem a pauta do Congresso em demanda pelo impeachment de um ministro do STF, um procedimento previsto no ordenamento legal brasileiro e de atribuição exclusiva do Senado? Não importa, uma “súcia de deputados sequestrou o Congresso”, “amotinou-se” e “tornou-o refém de uma chantagem” — termos que constam em editorial do jornal O Estado de S. Paulo, publicado em 8 de agosto de 2025. Alguém está propondo que se investigue as revelações de Eduardo Tagliaferro, um ex-funcionário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que mostrou evidências a comissões parlamentares segundo as quais as prisões do 8 de janeiro foram decididas com base em “certidões” de indivíduos baseadas em postagens datadas — à moda do antigo Dops da ditadura de Vargas — ou que relatórios que motivaram a operação do TSE contra empresários, em 2022, teriam sido confeccionados após a mesma? Pronto, o indivíduo em questão é “bolsonarista” ou “fanático”.

Esse exercício de lavagem cerebral sobre a opinião pública, que procura levar falaciosamente a crer que a sociedade deve ser particionada entre os alinhados e os não alinhados a um determinado ordenamento ou regime, é uma técnica conhecida, utilizada pela primeira vez durante a Revolução Francesa, e, posteriormente, replicada inúmeras vezes por autocracias, por meio de suas respectivas máquinas de propaganda. A narrativa de partição forçada do tecido social em dois grupos, bem como as ameaças, proscrições e sanções direcionadas ao subgrupo que se deseja intimidar, e no limite, eliminar, consiste na essência da chamada “mentalidade revolucionária.”
No período do terror, entre 1793 e 1794, os jacobinos, que se apoderaram da liderança do movimento “em nome do povo”, impunham, através de suas listas de proscrição de pessoas, e de textos diários publicados nos jornais e folhetos sob seu controle, a narrativa de que o indivíduo (“cidadão”) ou estava a favor da revolução, ou estava contra ela. Como nos lembra o filósofo Sir Roger Scruton em seu magnífico ensaio sobre o livro Reflections on the French Revolution, nos debates do clube jacobino, os membros da Gironda (grupo de deputados mais moderados) aparecem “não como pessoas, mas como manifestações de uma força — o girondismo”. O crítico individual se transforma num “inimigo do povo”, cujos direitos tornam-se automaticamente cancelados.
O componente de desumanização de adversários é um aspecto particularmente repugnante do modus operandi revolucionário. Dois recentes episódios (entre inúmeros) ilustram o esforço de remoção da dignidade dos opositores do regime em curso no Brasil. A agressão verbal registrada em vídeo à deputada Caroline de Toni (PL-SC), grávida de sete meses, em que um repórter a persegue e deseja “muita saúde” à sua filha, para quem espera que seja adotado o nome de “Dilma”, em referência à ex-presidente opositora da deputada; e a hostilização do advogado Jeffrey Chiquini e de vereadores de Curitiba, convidados a dar uma palestra na Universidade Federal do Paraná. Os convidados foram chutados, ameaçados com porretes por “estudantes” de esquerda, chamados de “fascistas” e impedidos de fazer a exposição.
Episódios como esses, por sinal, são frequentes não só no Brasil, mas em quase todos os países do Ocidente, que vivem, em maior ou menor escala, no que se refere à situação discutida nesse artigo, um estado de coisas semelhante. Em todas essas ocasiões, sem exceção, pessoas com visões mais alinhadas à direita são as vítimas da hostilização. Há casos extremos, de assassinatos — ou tentativas — de personalidades e políticos de direita, que têm se tornado mais frequentes. Podemos citar os atentados ao então candidatos a presidente Jair Bolsonaro, em 2018, e a Donald Trump, nos Estados Unidos (EUA), em 2024. Mais recentemente, na Colômbia, o pré-candidato a presidente e senador Miguel Uribe foi assassinado por um militante de esquerda. Em 10 de setembro, nos EUA, o ativista conservador Charlie Kirk foi assassinado com um tiro no pescoço, numa cena que chocou o mundo.


Há muitas semelhanças entre o Brasil contemporâneo e a França revolucionária do século XVIII. Uma diferença importante é que, nessa última, a perseguição foi imposta a qualquer pessoa que mostrasse o menor sinal de associação ou simpatia pelo regime derrubado. No Brasil, o movimento visa obviamente não a mudança de regime, mas a preservação do atual, e trabalha ativamente para impedir que qualquer político disposto a contribuir para o reestabelecimento pleno dos princípios constitucionais possa chegar ao poder. A identificação de qualquer crítico individual ao regime ao rótulo de “bolsonarista”, ou “inimigo da democracia” é parte integral dessa estratégia, como também o são as intimidações, cassações ilegais de mandatos e perseguições a que outros tantos são submetidos. A recente tentativa de tipificação de setores da oposição como “traidores da pátria” e a invocação da “soberania” do Brasil, no contexto das sanções impostas pelos Estados Unidos, segue também o paralelo com a França revolucionária, onde os oponentes dos jacobinos eram rotulados de “criminosos ligados ao estrangeiro”. Na União Soviética sob Stálin, os “traidores da pátria” — dissidentes do regime — eram mandados aos gulags, ou executados. Milhões de pessoas sofreram este destino.
Saint-Just dizia que “a República consiste na destruição total de tudo aquilo que a ela se opõe”. Vejamos que tipo de República nos restará, se os jacobinos de hoje lograrem atingir os objetivos que tão avidamente perseguem.
Leia também: “Abutres e leões”, artigo publicado na Edição 287 da Revista Oeste
Confira ainda
Fonte: Revista Oeste
+ There are no comments
Add yours