A luta armada no Brasil, entre 1961 e 1977, conduziu inúmeras ações violentas. Diversas delas resultaram em mortes de civis inocentes, além de militares. Movimentos como o MR-8, a ALN, a VAR — Palmares, entre outros, promoviam assaltos a bancos com o fim de financiar o treinamento dos terroristas, ou ações mais ousadas, como sequestros de autoridades estrangeiras. Alguns dos mais famosos crimes desse tipo foram, em 1969, o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, que contou com a participação de figuras que mais tarde se tornariam públicas, como Franklin Martins e Fernando Gabeira; em 1970, a execução do capitão do Exército Charles Chandler, e o sequestro dos embaixadores da Alemanha, Ehrenfried von Holleben, da Suíça, Giovanni Enrico Bucher, e do cônsul do Japão, Nobuo Okuchi. Os números são controversos, mas as estimativas para o número total de pessoas mortas durante o regime militar, dos dois lados do conflito, se situam em torno de 200.
A Lei da Anistia, de 1979, perdoou os crimes políticos cometidos tanto por adversários do regime militar quanto por seus agentes. O perdão não foi estendido a assassinos, sequestradores ou assaltantes. No entanto, a maioria dos elementos praticantes desses delitos que puderam ser capturados ficaram presos por pouco tempo, tendo sido postos em liberdade e, de pronto, exilados, em troca da vida dos embaixadores sequestrados. Retornaram ao Brasil após a promulgação da Lei da Anistia, não tendo voltado, depois disso, a serem processados, ou a pagar por seus crimes. Na prática, portanto, a lei de 1979 perdoou crimes gravíssimos e permitiu o retorno de seus autores à sociedade.
O instrumento da anistia foi utilizado em outras oportunidades, ao longo da história do Brasil, sempre como perdão a ações armadas que atentaram contra o regime vigente. Em todos os casos, incluindo o período mais recente do regime militar, às ações dos elementos posteriormente anistiados estiveram associadas centenas ou milhares de mortes.
Os insurgentes da Marinha do Brasil, na Revolta da Armada, ocorrida no fim do século XIX, foram anistiados no governo Afonso Pena, em 1908. As principais ações da revolta envolveram o bombardeio da cidade do Rio de Janeiro por encouraçados da Marinha, e o bloqueio de alguns portos. No total das ações, houve centenas de mortos, entre militares e civis. Já Getúlio Vargas anistiou, em 1934, os presos políticos da Revolução Constitucionalista de 1932, um conflito armado que produziu milhares de vítimas, e, em 1945, fez o mesmo com os presos políticos que se opuseram à sua ditadura, incluindo os comunistas responsáveis pela intentona de 1935, um levante armado que deixou centenas de mortos.
Em 2025, uma vez mais, a anistia volta ao epicentro do cenário político brasileiro. Desta vez, os agraciados seriam os envolvidos nos tumultos e depredações de 8 de janeiro de 2023, além do ex-presidente Jair Bolsonaro e algumas dezenas de outras pessoas, todos alegadamente envolvidos, e agora condenados por “tentativa de golpe de Estado”, nos meses finais de 2022.
A questão que se coloca hoje é: “Cabe a discussão de anistia aos envolvidos nesses atos?”

Comecemos pelas pessoas envolvidas nos tumultos de 8/1. Mais de cem permanecem presas, e outras tantas submetidas a medidas restritivas, como o uso de tornozeleira eletrônica, condenadas por crimes tais como “tentativa de abolição violenta do estado de direito”, “tentativa de golpe de estado”, “associação criminosa armada”, e outros.
Nos eventos de 8/1, não havia plano ou linha de comando, aspectos centrais de qualquer insurreição. Não foram encontradas armas de fogo com as pessoas que invadiram os prédios públicos — nos autos dos processos constam apenas referências a “armas brancas” como “estilingues, pedaços de madeira, bolas de gude, e esferas de aço”, e até a um batom, item que, utilizado por uma cabeleireira para pichar uma estátua, foi caracterizado nos autos como “substância inflamável”. Os prédios se encontravam desocupados, não tendo sido a liberdade ou a vida de qualquer autoridade colocada em risco. Não faz o menor sentido que essas pessoas tivessem sido sequer acusadas pelos crimes mencionados acima, pelos quais diversas delas foram condenadas a penas que chegam a 17 anos de prisão, uma sentença imposta, no Brasil, a pouquíssimos assassinos, traficantes ou estupradores. No máximo, deveriam ser julgadas por depredação de patrimônio público e baderna, crimes aliás cometidos, em inúmeras ocasiões, nos últimos anos, por militantes de esquerda, sem que, em nenhuma dessas oportunidades, qualquer pessoa tenha sido punida ou sequer indiciada.
Em segundo lugar, a conduta criminal dessas pessoas não foi individualizada. No processo penal, cada acusado deve ter sua conduta específica descrita e provada, não podendo o mesmo ser condenado apenas por pertencer a um grupo ou estar presente em determinado contexto. Nesse processo, as pessoas foram julgadas em “blocos”, e na maioria dos casos, seus advogados só tiveram oportunidade de sustentar suas defesas por meio de vídeos, sem a garantia que os mesmos tivessem apreciação adequada. Não houve também, portanto, o acesso à ampla e plena defesa, outra prerrogativa de qualquer acusado ou réu.
Em terceiro lugar, essas pessoas jamais deveriam ter sido julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pois não têm foro privilegiado. Deveriam ser julgadas por um juiz de primeira instância. Esse é um fato absolutamente incontroverso. Invocar o regimento do STF, que prevê sua competência em crimes cometidos em suas dependências, soa como mero oportunismo.
No que se refere ao julgamento do ex-presidente e alguns de seus assessores, cabem outras considerações. O ministro relator do caso citou, em várias ocasiões, nos autos e em vídeos, o fato de ele mesmo estar sendo monitorado por alguns réus do processo. Isso representa um grande conflito de interesses, suficiente para que fosse designado outro relator, sobre quem não pairasse suspeita de não imparcialidade. O problema é que, para além dessa situação, a 1ª Turma do STF, que julga Bolsonaro, inclui, além do ministro relator conflitado, um ex-ministro da Justiça de Lula — ex-governador de Estado, com longa carreira política — e também seu advogado pessoal. Lula é o maior adversário político de Bolsonaro, o que torna pessoas a ele ligadas naturalmente conflitadas. Ou seja, três dos cinco ministros que julgaram Bolsonaro podem ser considerados não imparciais.
Em segundo lugar, e, mais importante, temos as evidências — ou a falta delas — desses alegados crimes. Boa parte da peça de acusação foi baseada na delação de um colaborador que mudou sua versão dos fatos por seis vezes. A minuta do “golpe”, um documento que, alegadamente, disporia sobre a estrutura do Estado de exceção a ser organizado, jamais foi exibida. Não foi disparado um único tiro. Nenhuma tropa, nenhum regimento, nenhum jipe das Forças Armadas registrou, nos meses finais de 2022, qualquer movimentação que indicasse a possibilidade de que uma tentativa de rompimento da ordem constituída estivesse em curso.
Em terceiro lugar, o entendimento do STF a respeito do julgamento de ex-presidentes da República era, até meados de 2024, que eles deveriam ser julgados na primeira instância, pois, com o fim do mandato, também se extinguia a prerrogativa de foro. Seguindo esse entendimento, o então ex-presidente Lula foi julgado em primeira instância por seus crimes a partir de 2016, e pôde recorrer em liberdade após ter sido condenado por Sergio Moro a nove anos e seis meses de prisão, em 2017, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Posteriormente, em janeiro de 2018, teve sua pena aumentada para 12 anos de prisão pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região. A condenação de Lula ainda seria confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em abril de 2019, tendo sua pena sido reduzida, na ocasião, para oito anos e dez meses de prisão.
Em março de 2024, o STF iniciou um julgamento que alterou o entendimento da Corte quanto à prerrogativa de foro de autoridades. Durante esse julgamento, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, defendeu a permanência do foro privilegiado no Tribunal mesmo depois do término do mandato, desde que o crime tenha sido cometido durante o mandato. O novo entendimento seria confirmado pelo Tribunal no início de 2025.
Por esse motivo, Bolsonaro e seus assessores foram julgados e condenados diretamente pelo STF, o que os impede de recorrer a uma instância superior, após já terem sido sentenciados.
Diante dessas colocações, nos parece ser o tema da anistia indissociável da medida de justeza do julgamento a que os envolvidos tiveram direito. Cabem, na verdade, duas perguntas: 1) as pessoas envolvidas no 8/1, além de Bolsonaro e seus assessores, tiveram um julgamento justo? 2) eles cometeram crimes que mereçam a concessão de anistia?


À luz do aqui exposto, a resposta à primeira pergunta é “não”. Ainda, o correto seria um julgamento em primeira instância, conduzido por juízes imparciais, onde houvesse possibilidade aos réus de apresentar ampla defesa e a oportunidade de recorrerem a instâncias superiores, para que tivessem a chance de ter as severas penas a eles impostas revistas.
Contudo, é exatamente a impossibilidade, pelo menos no momento presente, de contar-se com um julgamento justo para todas essas pessoas, o fato que fomenta a alternativa de anistia, ainda que a resposta à segunda pergunta também seja “não”. Pois, na situação presente, distintamente dos casos anteriores na história, não houve mortes, crimes violentos, ou conflitos armados — tentativas concretas de ruptura institucional — de modo que não deveríamos estar falando em anistia — e sim, na anulação dos julgamentos.
No entanto, diferentemente dessa opção, que precisaria partir do Judiciário, a concessão de anistia (ainda) é prerrogativa do Congresso, o que a põe como o único expediente disponível para aliviar o sofrimento de centenas de famílias, e diminuir o sentimento de injustiça que hoje paira sobre o país. Reduzir esse sentimento, que tem origem nas penas desproporcionais impostas a pessoas que, no máximo, deveriam ter respondido por crimes contra o patrimônio público, e também na desumana perseguição a que o ex-presidente Bolsonaro, sua família e alguns de seus antigos assessores vêm sendo submetidos, é condição necessária, ainda que insuficiente, para a normalidade política ser restaurada, e o país possa se reorganizar na busca de um futuro.
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Fonte: Revista Oeste
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