ex-embaixador do país no Brasi fala a Oeste

À frente da Embaixada da Ucrânia no Brasil entre 2012 e 2021, Rostyslav Tronenko se destacou como um dos poucos diplomatas que conhecem bem a política externa brasileira. Durante sua gestão, acompanhou de perto as relações exteriores, buscou ampliar a cooperação bilateral e testemunhou os primeiros sinais da escalada russa no Leste Europeu. Tronenko também estreitou laços com o Itamaraty, articulou projetos de ciência e tecnologia e manteve diálogos em momentos sensíveis, em meio às disputas geopolíticas.

De volta ao continente africano, agora como embaixador em Moçambique, Tronenko carrega a experiência de quem representou seu país em momentos decisivos. Sereno e cauteloso, mas firme nas convicções, ele fala como diplomata que também viveu a guerra na pele ao testemunhar Kiev, a capital de seu país, se transformar em alvo diário de drones e mísseis disparados por ordens do presidente da Rússia, Vladimir Putin.

A Oeste, Tronenko detalha o cotidiano da população ucraniana, lembra a história da Crimeia, analisa as negociações de paz e comenta a postura do Brasil diante da guerra que se arrasta desde 2022.

A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva.

Como a guerra alterou o cotidiano dos ucranianos desde 24 de fevereiro de 2022? E em Kiev?

O choque foi enorme para o mundo inteiro. As cenas parecem ter saído de um filme de terror. Mulheres, crianças e idosos fugiram às pressas. Desde o começo da guerra, mais de 10 milhões de pessoas foram forçadas a sair da Ucrânia. Para muitos sobreviventes do Holocausto e das deportações stalinistas, a invasão reviveu traumas antigos. Só em 2022, milhões de ucranianos se tornaram refugiados. Estive em Kiev recentemente para uma reunião anual de embaixadores e foi muito difícil ver a situação. Muitos estão exaustos, mas resilientes. Alarmes aéreos são constantes, por causa de drones e mísseis balísticos disparados pela Rússia. Escolas, diariamente, interrompem aulas para levar crianças a bunkers. Quem não tem abrigo precisa correr para o metrô, onde muitas vezes passam horas aguardando no frio e um ambiente totalmente desconfortável. Pode imaginar uma situação assim? Uma forma de resistir a essa condição triste é saber que os nossos soldados, atualmente na frente de batalhas, enfrentam as condições bem piores.

O conflito com a Rússia é antigo. O senhor poderia recordar a anexação da Crimeia e Sevastopol, em 2014?

Crimeia e Sevastopol têm estatuto especial em nossa Constituição. A região já pertenceu a diferentes povos, mas para nós é símbolo de identidade nacional. Os tártaros da Crimeia sofreram limpeza étnica em 1944, quando 200 mil pessoas foram deportadas sob falsas acusações de colaborar com o nazismo. Famílias inteiras morreram em vagões de gado. Somente 50 anos depois é que puderam retornar. E, em 2014, foram novamente obrigados a fugir com a ocupação russa. Isso mostra o peso histórico e humano da Crimeia e de Sevastopol para nós, os ucranianos.

Quais crimes de guerra da Rússia a Ucrânia denuncia hoje?

As forças russas lançam, diariamente, incontáveis bombas aéreas poderosíssimas. O arsenal da Federação é imenso. Só em uma semana ocorreram mais de mil disparos, além de 1,3 mil drones de combate usados contra nossas cidades. Nos territórios ocupados, há ainda relatos de “safaris humanos”, nos quais civis são caçados por drones. No período, pelo menos 20 mil crianças acabaram sequestradas e levadas à Rússia. Esses crimes bárbaros fizeram com que o Tribunal Penal Internacional emitisse ordem de prisão ao presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Existe perspectiva de paz por meio de negociações?

Qualquer guerra termina à mesa de negociações. Tivemos mais de 180 rodadas, como os Acordos de Minsk, todavia, Moscou nunca cessou as hostilidades. O presidente Zelensky apresentou um plano de paz em 2022, durante encontro do G20. Agora, circulam propostas norte-americanas, inclusive uma para cessar-fogo discutida pelo governo Donald Trump. Precisamos evitar que a Rússia use isso apenas para ganhar tempo e se rearmar. Putin busca, antes de tudo, garantir a própria sobrevivência política. Ele teme acabar a vida como Saddam Hussein ou Muamar Gaddafi.

Qual a avaliação do senhor sobre o acordo proposto pelo presidente Trump a Zelensky

Desde março, a Ucrânia aceitou, de forma incondicional, a proposta do presidente Donald Trump para um cessar-fogo que colocasse fim à matança de ucranianos. A resposta russa, porém, foi intensificar a pressão no front e ampliar os ataques contra cidades e civis. Em maio, Zelensky concordou em viajar a Istambul para encontrar-se pessoalmente com o dirigente russo, que não compareceu. Seis meses depois, está claro que Moscou busca apenas ganhar tempo para prolongar sua guerra de agressão, manter o genocídio contra o povo ucraniano, escapar das sanções que enfraquecem sua economia e desgastar os Estados Unidos, forçando-os a abandonar as negociações — além de dividir os parceiros europeus e a própria Ucrânia. Essa é a velha estratégia dos regimes autoritários: dividir para reinar. Sem um cessar-fogo incondicional, com a participação ativa da Ucrânia e dos europeus, não será possível iniciar negociações sérias em nível de líderes nem avançar rumo à paz que o povo ucraniano tanto almeja.

Como o senhor avalia a postura do Brasil no conflito?

Gostaria que estivesse no lado certo da história. Entendo as necessidades do agronegócio, e, pelo que vi, os interesses comerciais falaram mais alto. O Brasil poderia ter exercido um papel de mediador e de liderança regional, como já fez no passado, mas faltou visão estratégica. Isso prejudicou as relações bilaterais que existiam com a Ucrânia.

E sobre a cooperação Brasil–Ucrânia em áreas como tecnologia e defesa?

Houve avanços, como na área espacial e nas negociações sobre Itaipu. Muitos projetos, contudo, ficaram travados por disputas políticas. O caso de Alcântara é um exemplo: o Brasil tinha condições de desenvolver seu próprio cosmódromo.

Que mensagem final o senhor deixa aos brasileiros?

Sou otimista. A guerra é desumana, mas acredito que vamos superá-la com apoio internacional e solidariedade. Tenho orgulho dos laços históricos entre ucranianos e brasileiros, especialmente no sul do Brasil. A hospitalidade com nossos refugiados foi notável. Continuo acompanhando o noticiário brasileiro como se fosse uma segunda pátria. E espero que, em breve, possamos reconstruir a Ucrânia e fortalecer ainda mais essa amizade.

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Fonte: Revista Oeste

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