Um exame pericial independente revelou que o relatório da Polícia Federal (PF) apresentado como fundamento para a operação de busca e apreensão contra empresários em 23 de agosto de 2022 não foi produzido na data divulgada pela corporação. Embora o documento traga como expedição oficial o dia 19 de agosto, uma análise dos metadados mostra que o arquivo PDF só foi efetivamente gerado em 29 de agosto de 2022 — seis dias depois da medida determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O laudo, assinado pelos peritos Reginaldo Tirotti e Jacqueline Tirotti e encomendado pelo jornalista David Ágape, concluiu que houve antedatação — ou seja, atribuição de uma data anterior à real produção do documento.
Divergência de datas
De acordo com os técnicos, a divergência temporal é incontornável. No corpo do texto, o relatório aparece datado de 19/8. Já nos metadados — espécie de “impressão digital” invisível de qualquer arquivo eletrônico — consta que o PDF foi criado e modificado apenas em 29/8/2022, às 14h55.
Em termos processuais, isso significa que o relatório não poderia ter servido de base antes da operação do dia 23, pois não existia na forma em que fora publicado.
Assinaturas clonadas
Outro ponto sensível é a questão das assinaturas. O relatório traz duas rubricas atribuídas ao delegado da PF Fábio Alvarez Shor, localizadas nas páginas 12 e 18 do arquivo.
A perícia constatou que ambas assinaturas são graficamente idênticas — coincidência absoluta de forma, inclinação e proporções. Isso seria impossível em assinaturas manuscritas, que sempre apresentam variações naturais. Segundo os peritos, trata-se de “transplante digital de assinatura”: a cópia de uma imagem previamente digitalizada e colada em diferentes locais do documento.
Mais grave: o arquivo não possui assinatura digital ICP-Brasil, exigida para dar autenticidade e validade inequívoca a documentos eletrônicos emitidos por autoridades públicas. O rodapé do relatório apenas traz a frase “Autenticado por Delegado de Polícia Federal…”, mas sem nenhuma certificação eletrônica oficial.
Sem autenticidade
O parecer reconhece que o arquivo não sofreu manipulações posteriores à sua compilação em 29/8. A estrutura é linear, sem indícios de edições posteriores. No entanto, a combinação de antedatação e ausência de assinatura digital qualificada compromete a autenticidade do relatório como peça oficial.
“O documento apresenta data diferente da expressa e a assinatura não é feita de forma digital, apenas havendo a representação de assinatura através de uma imagem colada, não sendo possível afirmar categoricamente sua autenticidade”, concluem os peritos.
O relatório em questão, intitulado “Representações PF – Pet. 10.543”, foi atribuído ao delegado Shor e tornou-se público depois de Moraes retirar parcialmente o sigilo da petição, em 29 de agosto de 2022. Ele serviu de fundamento para medidas de impacto contra empresários simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro, incluindo buscas, bloqueios de perfis em redes sociais e quebras de sigilo bancário.
“Não se trata da opinião do perito”, ressaltou Reginaldo Tirotti, em contato com Oeste. “O perito apenas opera softwares. Usamos as mesmas ferramentas utilizadas pela Polícia Federal.”
A operação contra os empresários
O relatório atribuído ao delegado Fábio Alvarez Shor serviu de base para uma das operações mais ostensivas do processo eleitoral de 2022. No dia 23 de agosto, a Polícia Federal, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, cumpriu mandados de busca e apreensão contra alguns dos nomes mais conhecidos do empresariado brasileiro, sob a acusação de promoverem discursos “golpistas” em grupos de WhatsApp.
Entre os alvos estavam Luciano Hang, dono da Havan, e Meyer Nigri, fundador da Tecnisa, além de outros empresários de setores variados. Eles tiveram celulares apreendidos, perfis em redes sociais bloqueados e sigilos bancários quebrados. A justificativa apresentada foi a de que, em um grupo intitulado “Empresários & Política”, os integrantes teriam defendido a hipótese de um golpe de Estado caso Jair Bolsonaro perdesse a eleição presidencial.
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A ação de Moraes gerou controvérsia desde o início. O próprio Ministério Público Federal, por meio da então vice-procuradora-geral Lindôra Araújo, avaliou que as mensagens eram opiniões trocadas em ambiente privado, protegidas pela liberdade de expressão, e que não configuravam crime. Ainda assim, o STF entendeu haver risco suficiente para autorizar medidas invasivas.
A operação só ganhou corpo depois da publicação de uma reportagem do portal Metrópoles, que trouxe à tona mensagens privadas do grupo de WhatsApp. Dias depois, Moraes determinou as buscas com base na representação da Polícia Federal agora contestada pela perícia.
Fraude em relatório da PF versus denúncia de Eduardo Tagliaferro
A fraude atestada pelos peritos se refere ao relatório da Polícia Federal. Já a denúncia de Eduardo Tagliaferro, feita na semana passada durante audiência no Senado, tinha como foco documentos elaborados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para sustentar a busca e apreensão contra os empresários.
O ex-assessor do TSE disse ter recebido ordens diretas para retroagir documentos e confeccionar mapas mentais que vinculassem empresários a supostos financiadores de atos antidemocráticos.
As duas denúncias se encontram no mesmo episódio, a operação contra empresários em agosto de 2022. Contudo, partem de objetos diferentes: um se refere ao relatório da PF, enquanto outro trata de um documento do STF — este último sem acesso ao público.
Fonte: Revista Oeste
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