Na semana em que a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência do PL 2.162/2023, a chamada “Lei de Anistia” para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, voltou à tona um clamor popular por pacificação: anistiar os que vêm sendo perseguidos pelo STF e extinguir penas que se mostram manifestamente desproporcionais.
O que se viu a posteriori, contudo, foi a tentativa de esvaziar a anistia e convertê-la numa “Lei da Dosimetria”, linha defendida pelo relator designado pelo presidente da Câmara e afinada com o argumento do STF de que anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito seria inconstitucional. Diante desse impasse, se a anistia seria declarada inconstitucional, então a única solução para se reestabelecerem a justiça e a pacificação política é extinguir os crimes de abolição do Estado de Direito e de golpe de Estado.
As penas são injustas e as pessoas não cometeram os crimes imputados por ser crime impossível
O primeiro ponto a se destacar é a absoluta desproporção das penas aplicadas. Pessoas sem antecedentes criminais, que não portavam armas ou tinham meios concretos de depor o governo, foram condenadas como se estivessem liderando um levante armado. É aqui que surge a figura do crime impossível, prevista no artigo 17 do Código Penal: não há como se consumar um golpe de Estado ou uma abolição do Estado de Direito quando os supostos autores não dispõem de nenhum instrumento real para tal. Invadir prédios públicos, por mais grave que seja a depredação patrimonial, não se confunde com a tomada violenta do poder.
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O que o Supremo fez foi aplicar tipos penais de forma absolutamente elástica, transformando vandalismo e desordem em atentado ao regime constitucional. O resultado é que centenas de cidadãos estão pagando penas que chegam a 15 ou 17 anos de prisão, por fatos que, em qualquer sistema penal coerente, seriam enquadrados em delitos patrimoniais ou de menor potencial ofensivo. Isso fere não apenas o princípio da proporcionalidade, mas também a lógica mais elementar do Direito Penal.
A anistia é constitucional
Se o problema está no uso distorcido dos tipos penais citados, a via natural de correção é o Congresso Nacional, que representa a soberania popular. A Constituição, no artigo 48, inciso VIII, é cristalina ao atribuir ao Legislativo a competência para conceder anistia. Não há, no texto constitucional, qualquer vedação a anistiar crimes classificados como “contra o Estado Democrático de Direito”. O que existe é a proibição de anistiar crimes hediondos, tortura, tráfico e terrorismo (artigo 5º, XLIII). Fora disso, a anistia é um instrumento legítimo de política criminal e pacificação social.
Portanto, a narrativa de que o Congresso não pode perdoar os envolvidos no 8 de janeiro é uma construção artificial, sem amparo jurídico. Historicamente, o Brasil já utilizou a anistia em momentos de tensão política, seja para pacificar insurgências, seja para virar a página de ciclos autoritários. Não há razão para que agora se negue ao Parlamento essa prerrogativa.
E se o STF insistir em declarar a anistia inconstitucional?
A se prevalecer a linha de que o STF barrará uma lei de anistia sob a alegação de inconstitucionalidade, então é preciso lembrar que o próprio sistema jurídico oferece uma saída ainda mais radical: revogar os tipos penais em questão. O Congresso tem poder para extinguir crimes e, quando isso acontece, a revogação retroage automaticamente em favor dos condenados, conforme manda o artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal.
Ou seja, se o Judiciário insiste em tornar inviável a anistia, o Legislativo pode simplesmente decretar o fim dos crimes de abolição violenta do Estado de Direito e de golpe de Estado. Não se trata de um “jeitinho”, mas de uma solução prevista no próprio ordenamento, impossível de ser invalidada pelo STF.
Os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de golpe de Estado (art. 359-M) foram criados pela Lei nº 14.197/2021, que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional (LSN), herdada do período militar. A intenção declarada era atualizar o ordenamento, eliminando a retórica autoritária da LSN. Na prática, porém, esses artigos nasceram confusos e abertos a manipulação política. Não há tradição desse tipo de legislação no ordenamento e a existência desses tipos penais é totalmente descartável.
Por que a mera dosimetria é insuficiente
Defensores da chamada “Lei da Dosimetria” argumentam que bastaria reduzir as penas para corrigir os excessos, mas essa solução é ilusória. Diminuir penas não resolve o problema de fundo, que é o desvio na aplicação dos tipos penais. Continuaria a existir a marca criminal de “golpistas” em pessoas que jamais tiveram condições reais de executar um golpe de Estado, perpetuando a injustiça e o estigma.
Além disso, a redução de penas mantém a porta aberta para novas arbitrariedades. Se os tipos penais são elásticos e politicamente manipuláveis, amanhã poderão ser aplicados contra outros grupos. Por isso, a única solução consistente é a extinção completa dos artigos 359-L e 359-M. Revogar esses dispositivos não significa abrir espaço para a impunidade: depredações, agressões e desordens já encontram enquadramento no Código Penal e continuariam a existir, aptas a cobrir eventuais malfeitos.
Conclusão
O Brasil vive um momento em que a retórica da defesa da democracia tem sido usada para perverter a própria essência do Estado de Direito. Centenas de cidadãos foram condenados de maneira desproporcional, sob tipos penais de origem política. O Congresso tem duas saídas: conceder anistia, constitucional, legítima e historicamente praticada ou, caso o STF insista em negar esse caminho, revogar os crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado.
A simples dosimetria não cura a injustiça. É preciso atacar a raiz do problema: a existência de crimes vagos e elásticos. Então, que se extingam esses tipos penais para que possamos devolver ao cidadão a segurança de que não será transformado em inimigo do Estado por participar de manifestações e discordar do regime vigente. Nada mais democrático que isso.
Bernardo Santoro é cientista politico, advogado, mestre e doutorando em Direito pela UERJ. Conselheiro do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados.
Fonte: Revista Oeste
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