Código Civil: legalidade como direito fundamental

Bernardo Santoro*

O Senado discute, neste início de 2025, o Projeto de Lei nº 04/2025, que pretende reformar amplamente o Código Civil.

A intenção declarada é modernizar institutos, atualizar redações e alinhar o texto às novas demandas da sociedade.

O problema é que, sob o pretexto de modernização, o projeto multiplica cláusulas abertas e conceitos vagos, transferindo para o Poder Judiciário a tarefa de dar conteúdo ao direito.

Se as normas deixam de ser claras e previsíveis, o cidadão fica refém da vontade do juiz e não da lei. Surge, aqui, a tese que merece ser debatida: a legalidade não deve ser entendida apenas como princípio, mas também como um direito fundamental do indivíduo, garantido pela Constituição brasileira.

Código Civil, a Constituição e o núcleo da legalidade

A Constituição de 1988 põe a legalidade no centro do sistema jurídico. O artigo 5º, inciso II, é categórico: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” Esse dispositivo, muitas vezes lido apenas como limitação ao poder do Estado, é também uma garantia individual de previsibilidade.

No campo penal, o mesmo princípio aparece reforçado no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Aqui, não se trata apenas de uma orientação abstrata; é uma proteção concreta ao cidadão contra o arbítrio estatal.

O que propomos é expandir essa lógica para além do direito penal: se a Constituição exige tipicidade estrita no âmbito criminal, por que admitir que, no campo cível, administrativo ou contratual, o indivíduo seja governado por cláusulas indeterminadas que permitem ao juiz criar o direito a posteriori?

Segurança jurídica como direito expresso

Outro ponto central está no artigo 5º, inciso XXXVI: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” Esse dispositivo traduz a ideia de segurança jurídica, valor essencial para que a vida em sociedade seja possível.

Ora, não há como garantir segurança jurídica sem previsibilidade normativa. Se a lei é vaga a ponto de deixar ao juiz a escolha do seu conteúdo, o cidadão perde a capacidade de planejar seus atos. Ele já não sabe se um contrato que celebra hoje será válido amanhã ou se um comportamento cotidiano será, de repente, declarado ilícito.

Portanto, a segurança jurídica, já positivada na Constituição, só se concretiza plenamente se lermos a legalidade como um direito fundamental subjetivo: o direito de ser regido por normas claras, determinadas e anteriores à conduta.

Legalidade geral e legalidade administrativa: duas faces da liberdade

A Constituição brasileira trabalha com dois sentidos de legalidade. O primeiro, já apresentado acima no artigo 5º, é a legalidade geral, voltada para os indivíduos, sendo sinônimo de liberdade: o cidadão é livre para agir em tudo aquilo que a lei não proíbe.

O segundo é a legalidade administrativa, prevista no artigo 37, caput: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.” Neste caso, a legalidade funciona como limite: o administrador só pode agir quando autorizado pela lei.

Essa distinção é crucial. Enquanto o cidadão só tem sua liberdade restringida pela lei, o Estado só pode atuar quando a lei lhe confere competência. É um arranjo que protege a sociedade em duas direções: contra os excessos do legislador (quando cria normas vagas que permitem ao juiz decidir conforme sua vontade) e contra os excessos da administração (quando extrapola o que a lei autorizou).

Por isso, é imprescindível reforçar esse duplo movimento: ampliar a esfera de liberdade do indivíduo e, ao mesmo tempo, restringir a margem de arbítrio do Estado. Onde a lei é clara, o cidadão é livre; onde a lei é vaga, o cidadão se torna refém da interpretação estatal.

O problema da transferência de poder ao Judiciário

Quando o legislador redige leis abertas em demasia, transfere, na prática, a competência normativa ao Judiciário. Isso viola a própria separação de poderes (artigo 2º da Constituição). A função de criar o direito é do Parlamento, representante do povo. O juiz, por sua vez, deve aplicar a lei existente e não inventar novas regras.

Essa usurpação gera um segundo problema: o voluntarismo judicial. Cada magistrado passa a decidir conforme sua própria concepção de justiça e não segundo parâmetros objetivos dados pela lei. O cidadão deixa de estar submetido à ordem democrática e passa a estar submetido à subjetividade de quem julga.

Em outras palavras: onde a lei é fraca, o juiz é forte. Quanto mais espaço o legislador abre, mais cresce o poder do Judiciário sobre a vida dos indivíduos.

Karl Engisch, o jurista alemão que melhor pesquisou sobre cláusulas jurídicas abertas, em seu famoso livro Introdução ao Pensamento Jurídico, é claro ao admitir que essas cláusulas são inevitáveis, mas devem ser utilizadas com máxima parcimônia possível e não da maneira recorrente como o novo projeto impõe, sob pena de se desvirtuar o papel tanto do legislador quanto do julgador.

Segundo ele, “os conceitos jurídicos indeterminados não podem ser eliminados da linguagem do direito. Porém, quanto mais indeterminada é a formulação, tanto maior é a margem de liberdade para o aplicador e tanto mais se reduz a função normativa da lei”.

A analogia com o direito penal

Não se trata de forçar uma leitura criativa da Constituição. O próprio texto constitucional mostra que, nos casos mais graves, como o direito penal, a clareza da lei é condição de legitimidade. O mesmo raciocínio deve ser aplicado a todo o sistema jurídico.

A máxima “nullum crimen, nulla poena sine lege” pode ser traduzida, no plano cível, como “nullum ius sine lege clara”: não há direito válido sem que a lei seja clara.

Se o Estado precisa ser contido no poder de punir, também precisa ser contido no poder de regular as relações privadas. A Constituição não admite que a vontade de um juiz substitua a vontade do legislador eleito nem a vontade das partes em um ato jurídico razoável.

Um critério para o controle de constitucionalidade

Diante disso, surge uma consequência prática: uma lei excessivamente aberta precisa ser considerada inconstitucional. O fundamento está em três eixos constitucionais:

  1. Art. 5º, II e XXXVI – legalidade e segurança jurídica como direitos fundamentais;
  2. Art. 2º – separação de poderes, que impede, ou restringe ao máximo, a transferência do poder normativo ao Judiciário;
  3. Art. 1º – Estado Democrático de Direito, que exige previsibilidade como condição da liberdade.

Portanto, o controle de constitucionalidade não deve se limitar ao conteúdo material da norma, mas também à sua forma. Uma lei que abdica de ser clara, objetiva e previsível fere diretamente o pacto constitucional.

Para fins de democracia e Estado Democrático de Direito, está cada vez mais claro que é melhor um tribunal constitucional declarar a inconstitucionalidade de uma norma por falta de concretude do que abrir espaço para o judiciário inovar contra a vontade da população, sob pena de cairmos em um regime de oligarquia judiciária.

Conclusão: a legalidade como direito de todos

A legalidade, muitas vezes reduzida a um princípio administrativo, precisa ser resgatada em sua dimensão mais profunda: a de direito fundamental do ser humano a viver sob normas claras e previsíveis.

O PL 04/2025, ao multiplicar cláusulas abertas, ameaça transformar o sistema jurídico em um campo de incerteza permanente. A sociedade brasileira não precisa de leis vagas que empoderem juízes; precisa de leis claras que fortaleçam cidadãos. Em última instância, a luta pela legalidade como direito fundamental é a luta pela própria liberdade, porque um povo só é livre quando sabe, de antemão, quais são as regras do jogo e pode exigir que elas sejam respeitadas por todos, inclusive pelo Estado e pela sua casta mais poderosa: a dos juízes de tribunais superiores e supremos não eleitos pela sociedade brasileira.

Leia também: “Um voto supremo”, reportagem publicada na Edição 287 da Revista Oeste


*Bernardo Santoro é cientista político e advogado, mestre e doutorando em Direito pela UERJ. É conselheiro do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados

Fonte: Revista Oeste

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