O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros réus segue em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), assim como decisões judiciais de caráter questionável permanecem sendo impostas — sem respaldo constitucional, sem fato novo que as sustente e em afronta direta a direitos fundamentais.
O ativismo judicial pode ser constatado em diversas decisões tomadas no âmbito do chamado “núcleo I” do que seria uma tentativa de ruptura institucional, conforme a Procuradoria-Geral da República (PGR), entre elas, a permanência de policiais federais na área externa da residência o ex-presidente.
A decisão não tem base jurídica e tampouco um fato novo capaz de dar suporte constitucional e legal, a não ser a repetição do frágil argumento de “risco de fuga” sem qualquer indício que a justifique. Bolsonaro suporta, de forma resignada, a afronta ao seu direito fundamental à liberdade de ir e vir; de expressão e, sobretudo, da inviolabilidade do seu domicílio, ferindo de morte o Direito, no que se refere às cláusulas pétreas que não podem ser restringidas, a menos que se constate um fato muito grave que possa justificar aquela afronta.
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Além da ausência de fundamentos jurídicos e de fatos, são gritantes os diversos vícios processuais e materiais que maculam a decisão, tornando-a inconstitucional e ilegal. Em primeiro lugar, a ordem judicial decorre de requerimento de um representante político junto à Polícia Federal (PF), que, por sua vez, encaminhou à PGR visando a emprestar um pseudorespaldo legal, tendo em vista que aquela função é do órgão acusador e não de um membro de um poder político.
É importante observar que o “requerimento” deferido pelo ministro Alexandre de Moraes remete a uma afronta à lei processual penal pelas seguintes razões:
- a) acrescentar mais uma medida cautelar dessa gravidade ao acusado dependeria, no mínimo, do descumprimento de uma delas, o que não ocorreu; e
- b) o parecer deveria partir da PGR e não de um requerimento de representante político junto à PF.
A ordem judicial carece de uma fundamentação constitucional e legal, o que provocaria a declaração de sua nulidade processual. A Constituição e a legislação exigem que o magistrado fundamente as suas decisões. O Inciso IX do artigo 93 da Carta Magna prevê que “todos os julgamentos serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…(…)”.
Código do Processo Penal x julgamento de Bolsonaro

Por sua vez, os artigos 155, 315 e 413 do Código de Processo Penal dispõem sobre a imprescindibilidade da fundamentação de decisões judiciais em todas as fases do processo penal. Trata-se de um direito fundamental do acusado, no sentido de disponibilizar o seu controle pelas partes, além de assegurar a legalidade da decisão.
Ao se fazer a leitura da decisão, não se encontra qualquer dispositivo que a justifique. Quanto ao mérito, as ilegalidades são visíveis. Antes que se exponha as ilegalidades é preciso esclarecer o que se entende por “inviolabilidade do domicílio”. O Inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 prevê: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
A polícia não pode “permanecer” na casa de alguém, mesmo com ordem judicial, supostamente fundamentada. Ela pode “entrar” no domicílio de uma pessoa com ordem judicial “durante o dia” para uma busca e apreensão ou colher provas. Uma ordem judicial sob o manto de medida cautelar para que a polícia “permaneça” no domicílio de alguém não encontra suporte constitucional e legal, além do fato de que a polícia não pode entrar ou permanecer naquele domicílio, “durante a noite”, conforme determina a doutrina e a própria jurisprudência do STF.
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À exceção das hipóteses dispostas no Inciso XI (flagrante delito, desastre ou socorro), não há qualquer justificativa para que o acusado tenha a sua privacidade e intimidade invadidas pela presença de policiais, especialmente à noite. Trata-se de uma imposição de medida cautelar abusiva e desproporcional, até porque, a gravidade desse tipo de restrição seria justificada, se o acusado fosse líder de uma quadrilha de traficantes, um psicopata ou algo similar. É oportuno esclarecer que a doutrina e a jurisprudência se referem ao conceito amplo de domicílio, incluindo, jardim, quintal, garagem ou qualquer área externa que faça parte do espaço do domicílio e que seja separada por muros ou cercas.
Protegendo a Constituição


Todo esse espaço está sob a proteção da Constituição. Trata-se de uma tutela estatal que só poderia ser excepcionada se houvesse um fato novo extremamente grave para justificar uma intervenção dessa natureza. No caso do ex-presidente, essa decisão configura um ato violador de direitos fundamentais. De acordo com a doutrina brasileira e a jurisprudência alemã, o domicílio é considerado asilo inviolável ligado a outro direito fundamental: o direito à privacidade (previsto no Inciso X do artigo 5º da Carta Magna) e outro ainda mais relevante: o desenvolvimento da personalidade que depende da privacidade espacial.
O direito ao desenvolvimento da personalidade garante ao indivíduo, a sua autonomia individual que pressupõe o direito à liberdade de expressão, além da sua integridade física, psíquica, moral e imagem, cujo conjunto remete aos direitos de personalidade que não podem sofrer qualquer intervenção estatal ou de terceiros. No caso concreto, o ex-presidente mora com a mulher e a filha menor, o que potencializa a afronta àqueles direitos. Essa medida representa a ultima ratio, desde que apresente fundamentos claros e devidamente motivados do Poder Judiciário.
Não é à toa que a 4ª Emenda da Constituição norte-americana prevê normas extremamente rigorosas nesse sentido, visando a efetiva proteção do cidadão e do seu domicílio, contra buscas e apreensões arbitrárias e abusivas, exigindo causa específica e as pessoas, local e coisas a serem revistadas e apreendidas.
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Por Vera Chemim. Advogada, especialista em Direito Constitucional e mestre em administração pública pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Fonte: Revista Oeste
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